domingo, 23 de julho de 2017

UMA HISTÓRIA DE RESILIÊNCIA



Por Néa Tauil



Como psicóloga, as histórias que escuto em meu consultório, ao longo dos anos, são extraordinárias e, com frequência, tão improváveis que, se as lêssemos em um romance, poderíamos considerá-las por demais fantasiosas ou aterrorizantes. Porém, são histórias verdadeiras de pessoas que passaram por momentos trágicos, mas que conseguiram se adaptar e retomar à vida. Sem dúvida, além das que escuto, são muitas  as histórias de resistência e superação de pessoas vítimas de  acidentes, doenças, catástrofes naturais (terremotos, furacões e enchentes). Bem como de situações sociais degradantes, como a miséria, o desemprego, a violência física, psicológica e sexual, os diversos tipos de preconceito (racismo, idade, peso/tamanho, nativismo, sexismo, homofobia, etc.) Enfim, são relatos de pessoas que  conseguiram minimizar os efeitos nocivos que poderiam carregar da experiência traumática, mas deram a volta por cima.

Como exemplo de história que transmite resiliência, citarei aqui a da artista Madonna. No dia 16 de agosto, de 1958 nascia, em Bay City, Michigan (EUA), Madonna Louise Ciccone. Ela passou a infância em Pontiac, um subúrbio de Detroit e Avon Township. Quando tinha cinco anos, sua mãe faleceu, vítima de um câncer de mama, aos 30 anos. Meses antes de sua morte, Madonna havia notado mudanças no comportamento de sua mãe. Estava atenta, embora não entendesse a razão disso. Sra. Ciccone, não encontrando maneiras para explicar sua terrivel condição médica, muitas vezes começava a chorar, quando questionada por Madonna, altura em que esta respondia com um abraço fraternal em sua mãe. "Lembro-me sentindo mais forte do que ela era". Madonna lembra: "Eu era tão pequena e ainda assim eu senti que ela era a criança." Madonna reconheceu mais tarde que ela não tinha entendido o conceito de sua mãe morrer. "Havia tanta coisa não dita, tantas emoções a desembaraçar e resolver, remorso, culpa, perda, raiva, confusão. [...] Eu vi minha mãe, com o olhar tão bonito e mentiram para mim como se ela estivesse dormindo em um caixão aberto. Então, eu notei que a boca de minha mãe estava engraçada. Levei algum tempo para perceber que ela tinha sido enterrada. Nesse momento terrível, eu comecei a entender o que eu tinha perdido para sempre. A imagem final da minha mãe, ao mesmo tempo tão pacífica e grotesca, assombra-me até hoje." Madonna finalmente aprendeu a cuidar de si mesma e de seus irmãos, virou-se para a avó, na esperança de encontrar algum conforto e alguma forma de sua mãe nela. Os irmãos Ciccone, ressentidos, invariavelmente, rebelaram -se contra qualquer pessoa trazida para casa ostensivamente para tomar o lugar de sua querida mãe. Em entrevista à Vanity Fair, Madonna comentou que ela se via em sua juventude como uma jovem "solitária, que procurava por alguma coisa. De certa maneira, eu não era rebelde. Importava-me em ser boa em alguma coisa. Eu não raspava minhas axilas, não usava maquiagem como garotas normais. Mas, estudei e tenho boas qualidades.... Eu queria ser alguém." Temendo que seu pai poderia ser tirado de seu convívio, Madonna foi muitas vezes incapaz de dormir sem estar perto dele. Seu pai se casou com a governanta da família Joan Gustafson, tiveram dois filhos: Jennifer e Mario Ciccone. Neste momento, Madonna começou a expressar sentimentos não resolvidos de raiva para o pai, que perduraram por décadas, desenvolvendo nela uma atitude rebelde. Já adulta, ao receber o prêmio de Mulher do Ano - 2016 da revista
Americana Billboard, em Nova York, Madonna em sua fala de agradecimento falou sobre sexismo, misoginia e uma série de obstáculos sofridos ao longo da vida. Em uma das partes do discurso,   falou de sua vida como adolescente, quando havia acabado de se mudar para Nova York: "As pessoas estavam morrendo de AIDS em todos os lugares. Não era seguro ser gay, não era legal ser associada à comunidade gay. Era 1979 e Nova York era um lugar muito assustador. No meu primeiro ano [na cidade], eu fiquei sob a mira de uma arma de fogo, fui estuprada num terraço com uma faca na minha garganta, tive meu apartamento invadido e roubado tantas vezes que eu parei de trancar as portas. Com o passar do tempo, perdi para a AIDS ou para as drogas ou para as armas quase todos meus amigos que tinha. Como vocês podem imaginar, todos esses acontecidos inesperados não apenas me ajudaram a me tornar a mulher ousada que está aqui, mas também me lembraram que sou vulnerável, e que na vida não há segurança verdadeira, exceto sua auto-confiança.” No final de seu discurso, Madonna relembrou alguns artistas já falecidos:“Eu acho que a coisa mais controversa que eu já fiz foi ficar aqui. Michael [Jackson] se foi. Tupac se foi. Prince se foi. Whitney [Houston] se foi. Amy Winehouse se foi. David Bowie se foi. Mas eu continuo aqui. Eu sou uma das sortudas e todo dia eu agradeço por isso."

Nota-se que a Madonna pode ser considerada uma pessoa com caráter resiliente. Para a psicologia, resiliência é a capacidade humana de enfrentar, sobrepor-se ou sair fortalecido ou transformado de experiências de adversidade. É a capacidade de utilizar situações adversas para o crescimento e desenvolvimento emocionais, habilidade de retornar ao estado habitual de saúde mental, após passar por momentos trágicos. Com base nisso, é correto dizer que as características do caráter resiliente são: introspecção, autonomia, capacidade  de - diante de uma situação adversa- manter distância emocional, sem cair no isolamento, capacidade de se relacionar e estabelecer laços de intimidade com outras pessoas, capacidade de manter relações e de se colocar no lugar do outro, ter iniciativa, bom humor (não é euforia), criatividade, capacidade de criar ordem, beleza e finalidade, a partir do caos e da desordem, senso ético, capacidade de comprometer-se com valores, autoestima consistente e capacidade de dar sentido emocional às experiências de vida por meio da utilização de simbolização.

Se considerarmos que a resiliência se baseia  nas experiências relacionais precoces e na possibilidade de estabelecer laços sociais posteriores, pode-se afirmar que um fator de proteção e fortalecimento para superar adversidades complexas é o fato de estes indivíduos apresentarem, pelo menos, um vínculo seguro na infância com uma pessoa significativa. Isto quer dizer que para a obtenção de um caráter resiliente, o importante é contar com apoio incondicional de uma figura significativa, como o acolhimento materno que tenha sido recebido incondicionalmente. Mas, é bom lembrar que não precisa ser necessariamente a mãe quem faz esta função. O que importa é haver essa figura significativa. A psicanalista Alice Miller (2004) chama essa pessoa significativa de testemunhas auxiliadora e conhecedora. A testemunha auxiliadora é uma pessoa (tia, avó, irmãos, vizinha, empregada, babá, professora) que ajuda a criança maltratada ou negligenciada, ainda que de forma esporádica, oferecendo-lhe apoio, amor, carinho, sem a intenção de manipulá-la, com a finalidade de educá-la, de confiar nela e transmite-lhe a sensação de que não é má, que merece ser tratada com respeito. Muitas vezes, a criança acredita ser maltratada por ser má, ou culpada por apanhar, ser xingada, abusada, negligenciada, carregando consigo esses sentimentos por toda sua vida, comprometendo sua noção de valor (autoestima), e até suas escolhas. Essa testemunha será muito lembrada quando adulta, descobrindo a diferença que o amor dessa pessoa fez em sua história. Muitas repetições de padrões destrutivos são rompidos devido a essa testemunha. Em casos em que essa testemunha for totalmente ausente, quando adulta, poderá usar a violência em que foi tratada quando criança, em seus próprios filhos, empregados, etc. Alice Miller estudou a infância de Hitler e não foi encontrada nenhuma pessoa significativa em sua vida. Já a testemunha conhecedora é uma pessoa que conhece as consequência da negligência e do abuso (psicológico, físico e sexual) sofrido pela criança. Na vida adulta, a testemunha conhecedora pode representar um papel semelhante ao da testemunha auxiliadora na infância. Pode ajudar, transmitindo aos adultos que sofreram algum tipo de abuso - na infância - empatia, acolhimento, validação dos sentimentos, ajudando-os assim a entender melhor suas histórias, seus sentimentos de medo e impotência - para que agora na idade adulta possam ter mais liberdade em suas escolhas, libertando-os das consequências do sofrimento do passado. Então, podemos supor que a sorte da Madonna foi a presença de pessoas significativas em sua vida, tanto na infância quanto na idade adulta, possibilitando, assim, o desenvolvimento do seu caráter resiliente.


Como foi dito anteriormente, na vida adulta, a testemunha conhecedora pode representar um papel semelhante ao da testemunha auxiliadora na infância. Dentre algumas testemunhas conhecedoras estão aqueles psicólogos(as) que estudam e trabalham com abusos sofridos na infância, pois quando adulto, é indispensável  a  presença da testemunha conhecedora, para  que haja libertação do sofrimento da infância. Mesmo porque, muitas dessas questões são dolorosas e é preciso "elaborar", isto é, transformá-las em algo produtivo que possa contribuir para vida da pessoa. É nesse contexto que entra a figura dos psicólogos e processos terapêuticos, lugar este, onde é possível transformar frustração e sofrimento em realização e felicidade.


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Referência: 
Miller, Alice; A verdade Liberta: superando a cegueira emocional. São Paulo: Martins Fontes, 2004